quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Mil Milhas, do pior jeito possível


Antes do Antonio Hermann* comprar os direitos das Mil Milhas, todo mundo queria fazer. E podia! A última edição foi absolutamente aviadada. Não tinha um fusca inscrito!

Onde já se viu Mil Milhas sem fusca andando?



Eu tive a sorte de me juntar a outros dois malucos e fazer uma Mil Milhas.

A gente tinha um Passat preparado segundo o regulamento da antiga Turismo N (hoje parte do Campeonato Paulista de Marcas), que era usado numa escola de pilotagem como carro de instrução.

Tinhamos comprado o carro de um piloto de relativo sucesso, só que sem o motor original e sem peças importantes da suspensão. Justamente o que fazia o carro andar bem.

Só isso.

Esse não é o nosso, mas a muvuca foi parecida.

Mas montamos o carro do melhor jeito que pudemos e... tínhamos um carro de corrida, afinal.

Daí a inscrevê-lo numa edição das Mil Milhas foi só questão de tomar duas ou três cervejas a mais do que o usual.

Decididos que estávamos, começamos a preparar o carro. Carburador emprestado, peças consumíveis novas (cabos, velas, tampas, óleos, pastilhas e lonas de freio, etc), uma boa afinada no motor, alinhamento bem feito e...

Pista!

Participamos de todos os treinos possíveis e sempre sem pensar muito no carro. O objetivo era sempre andar mais rápido que os companheiros.

Detonamos, claro, todos os jogos de pneus que tínhamos. De embrulho também foi a embreagem. Os freios também. Pra embreagem nova não tinha grana. Pros freios, tinha.

E pros pneus?

Isso era problema pra mais adiante.

Fomos recrutando equipamentos e gente pra nos auxiliar durante as quase 12 horas de prova, à noite. Irmã e cunhado se encarregaram do rango (geladeiras, bebidas e comidas - eles "patrocinaram" isso). Primo e amigos se encarregaram do reabastecimento (descolaram torre, extintores de incêndio e roupagem adequada). Amigos de amigos se encarregaram de contratar alguns mecânicos e supervisionaram os trabalhos no box.

No dia D a gente não tinha mais pneus, como eu disse.

A gente dividiu box com a equipe da Hyunday, que competiu com dois carros de rua, só montados com o equipamento de segurança obrigatório. Eles ficaram com pena e nos cederam quatro pneus novos (ótimos, por sinal). Era o que a gente tinha pra fazer 12 horas de prova: quatro pneus.

Tinha que chover, então.

Na chuva os pneus gastam bem menos.

Resolvido isso, quem faria a largada?

Nem tinha o que pensar. Eu, lógico! Só que eu não ia tirar o carro do box, chegando a hora do pré alinhamento já, enquanto minha irmã "da sorte" não chegasse.

Puta muvuca, barulho de motor sendo ligado, agitação febril e... nada da minha irmã chegar.

A mãe de um dos meus companheiros-pilotos, psiquiatra, veio falar comigo.

"Mas a gente tá aquí e a tua irmã vai chegar! Pode botar o carro na pista!"

"(Nem fudendo!) Prefiro esperar minha irmã."

"O box fecha e você tem que largar dele."

"(Que se foda) Prefiro esperar minha irmã."

"Vai, caralho!" (Um dos companheiros-pilotos).

A irmã, esbaforida, atrasada como sempre, aparece na janela do Passat. Ignição on, bomba de gasolina on, start.

Pláplápláplápláplá

Sempre gostei do barulho de motor feito pra pista. Marcha lenta embaralhando por causa da mistura rica de combustível mais comando de válvulas mais agressivo e mais escapamento dimensionado fazem música muito mais legal do que o mais energético devaneio musical do Robert Fripp.

Já há algumas edições a largada das Mil Milhas vinha sendo feita com os carros andando, à lá Indy 500.
Nada assustador, já que o que pega mesmo é largar parado.

Como tínhamos classificado o carro, que não era lá muito rápido já que tinha motor quase original, no fundo do grid, não tinha muito com que me preocupar.

Aliás, os outros é que tinham que se preocupar comigo. Afinal, quem é que fiscaliza largada lançada direito?
Como eu disse, larguei no fundão do grid e optei por começar a acelerar já na saída da curva da Junção, passando um monte de gente. Iam me passar mesmo outra vez...

Como eu já disse também, destruímos o carro nos treinos tentando ser mais rápidos uns que os outros. Não por acaso, depois de meia hora de prova a temperatura da água começou a subir. Fui aliviando o ritmo até achar um ponto em que a temperatura não subia e o carro não era tão lento assim, virando na casa dos dois minutos e vinte segundos.

Confortável que estava, não me preocupei com o ritmo dos outros carros porque sabia que mais gente teria problemas também. Não deixando a temperatura passar dos 100°C, o carro ia até o fim. Ou perto disso.

Quase no fim do meu stint começou a chover. Os pneus emprestados se pagaram nessa hora. Eram radiais de carro de rua recém lançados e com um desenho na banda de rodagem que proporcionava boa drenagem. O Passat tava ótimo na chuva. A temperatura da água abaixou, tinha bom grip e o tempo de volta não abaixou quase nada. Se chovesse até o fim da corrida estaríamos muito bem, se o carro não parasse. Os carros mais potentes, equipados com pneus slick, não permitiam a seus pilotos cruzar as retas com o acelerador a fundo. O risco de aquaplanar é grande nessa situação e tinha ainda muita corrida pela frente.

Enquanto isso, a namorada de um dos companheiros-pilotos, que ficou encarregada de fazer a comunicação do box com o carro via placa, me mostrava insistentemente o sinal "P +". Pra mim, era que eu tava subindo de posição na corrida. Mais tarde ela me disse, do alto da sua sabedoria (que nem supunha que o carro já tava com a junta de cabeçote queimada), que era pra eu pisar mais.

He he he

Cabô meu stint e vou pro box. Berrei pro companheiro-piloto que ia assumir que tinha junta de cabeçote queimada e que a embreagem tava começando a patinar.

Os mecas botaram mais água no radiador e mais óleo no cárter enquanto meu primo reabastecia (naquela época podia reabastecer junto com outros serviços no carro). Ajudei o companheiro-piloto a atar o cinto (nele eu confiava) e... carro na pista outra vez.

Esse companheiro-piloto, o Luis Felipe Paone Calmon, é um PUTA piloto. Daqueles que nasce bom, já.
Tem um puta domínio do carro. Sabe o que tá fazendo na direção. Sempre é mais rápido que os carros que pilota. Por isso faz cagada de vez em quando. Mas a culpa é sempre dos carros menos rápidos que ele.

Sabedor da situação do carro, voltou pra pista debaixo de um puta aguaceiro, que pra ele não queria dizer muita coisa. Por alguns momentos éramos o carro mais rápido da pista.

Mais um tanque de álcool gasto, mais uma parada. Mais água no radiador, mais óleo no cárter, aviso ao outro companheiro-piloto de que a temperatura devia ser mantida dentro do razoável e que a embreagem estava patinando.

Apaixonados desde sempre por pilotagem, eu e Luis Felipe passamos a trocar impressões sobre o carro, a pista e a corrida, animados com o fato de sentirmos que o carro poderia ir até o fim da prova mesmo com a junta queimada e quase sem embreagem. Nós não precisamos do pedal da esquerda pra guiar. Sabemos trocar de marcha respeitando o tempo certo do câmbio.

Eis que o terceiro companheiro-piloto entra no box depois de apenas uma volta com a alavanca do câmbio na mão.

Surtei.

Queria tirar o cara a tapa de dentro do carro.

Queria enfiar a alavanca...

"Cêis falaram que a embreagem tava patinando e eu quis testar..."

Óbvio que nem deixei o cara terminar a frase.

Óbvio também que fui carregado dalí pra outro lugar, bem longe.

Por mim, fim da corrida depois de 3 horas quase.

Mais calmo, eu e Luis Felipe abandonamos nosso box (e minha irmã, cunhado, primo, amigos, ajudantes), andando vagarosamente pela frente dos boxes e... até felizes. Mandamos bem nos nossos stints. Tava bom, já.

Nos avisaram que tava tendo uma festa no último andar da torre de cronometragem.

"Vamos lá?" Perguntei.

"É..." Respondeu LF, dando de ombros. Não tínhamos muito mais o que fazer.

Não me fiz de rogado e já comecei a derrubar latas de cerveja. LF na coca cola.

Já meio bêbado, entra na festa um dos nossos ajudantes falando pra irmos correndo pro box, que o carro tava quase pronto.

"Pronto como?!"

"Fui até a oficina e peguei outra caixa de câmbio. Já trocamos e já vão ligar o motor. Corre lá!"

Uau!

Não tinha marcha a ré nessa caixa, me disseram. Não podia rodar de jeito nenhum. Não dava pra manobrar o carro também. Mas quem é que liga pra isso depois de tomar cerveja?

Pista outra vez!

Meio seca, meio molhada. Só o trilho por onde passavam os carros é que tava seco. Isso é um inferno. Pra quem tem que sair do trilho seco, né? Pra gente que tava com um carro de motor pequeno a recomendação era não sair do traçado, que sempre é ônus do cara que vem mais rápido pra ultrapassar.

Bom, isso.

Minha diversão passou a ser a procura da única menina que tava inscrita na prova. Ela tava à bordo de um Opala vermelho. Tinha dois Opalas vermelhos inscritos e ainda andando.

Mas era fácil saber qual era o dela.

Carro de corrida tem suspensão dura e "sente" até tampa de garrafa de cerveja (refrigerante, vai), devolvendo bruscamente e aos pulos a deformação elástica sofrida pelas molas. Em descompasso, pois, com a malemolência dos peitos femininos.

Então o Opala vermelho cujos peitos pulavam, era o da menina.

Esse Opala não é vermelho. Não emboco uma foto certa.

Minha outra diversão passou a ser procurar amigos que também estavam correndo para ajudá-los facilitando as ultrapassagens e dificultando as dos "inimigos" das mesmas categorias.

Daí em diante optamos por stints mais longos.

Num dos reabastecimentos deu merda. O primo esqueceu de fechar a viseira do capacete e quando o tanque encheu, deu refluxo. Bem "nas vista" dele. Tooooca desfalcar o time bem no meio da corrida! Irmã, cunhado e primo a caminho de um pronto socorro pra ver se salvava alguma coisa.

Naquela época já não podia fumar nos boxes. E era só o que faltava: pegar fogo no circo.

Mais um stint pro LF, com chão seco, mais pro outro companheiro-piloto, que iria terminar a corrida e receber a bandeirada.

Não tem muito o que falar sobre a corrida daí em diante, já que depois de certo tempo os carros (equipes/pilotos) se acomodam nas posições em que estão e assim seguem até o fim, sem arriscar quebrar nada.

E foi o que fizemos, levando inacreditavelmente o carro até o fim.

Legal mesmo foi o fim da feira.

Todos se cumprimentando pelo carro ter cruzado a linha de chegada andando com junta de cabeçote queimada e tudo, um escapulindo de fininho, mais outro e mais outro até que...

Sobramos eu, toneladas de peças, ferramentas e tralhas. E o Passat de corrida.

Não adiantava espernear. Tive que fazer caber toda a tralha, câmbio quebrado inclusive, dentro do Passat e... ir com ele pra casa.

Sozinho.

Em casa, horas e horas depois, ainda sozinho, ainda de macacão, tava eu descarregando o Passat, guardando peças e ferramentas nos seus lugares outra vez e limpando o interior do carro por conta do óleo (fedorentíssimo) do câmbio quebrado que vazou.

Pra quem acha que é maravilhoso andar em prova longa, é bom considerar que carro de corrida não tem revestimento térmico e muito menos acústico e ainda por cima não é vedado, ou seja, entra água dentro (bastante água) quando chove.

A chapa de aço que separa o cockpit do habitáculo do motor esquenta. E esquenta muito! É muito quente dentro do cockpit e portanto sua-se muito. Sentar no carro logo em seguida de um cara ter pilotado por uma hora e meia, suando, não é nada agradável. Sem contar que não tem essa de parar pra fazer xixí. Faz-se no carro mesmo, no macacão e no banco. Ninguém percebe por conta do cheiro do carro, uma mistura deliciosa dos cheiros de borracha, álcool, óleo e graxa que acaba encobrindo os outros cheiros. Mesmo não fazendo xixí o macacão fica encharcado de suor.

No assoalho da maioria dos carros tem uns furos tapados por borrachas. É normal tirar as borrachas pra água não empoçar, já que não se usa vidro nas janelas das portas por força do regulamento. É passar em poça d´água que imediatamente surgem geysers de água gelada que chegam a espirrar no teto.

Me convidam até hoje pra participar de prova longa e acham que sou mal educado por rosnar agressivamente um não, nem fodendo.

Burro que sou, ainda participei de mais algumas provas longas de carro e kart. Na verdade ainda participo, se me chamarem. Mas nunca mais com carros ou karts meus.

Alguém aí sabe de algum time desfalcado precisando de piloto pra prova longa?

6 comentários:

  1. Até aqui, sensacional!
    Quero ver o resto da história.

    Abraços,
    Bruno

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  2. Acho que este texto foi uma das melhores narrativas que eu já li. Eu me senti ali na arquibancada em frente ao paddock, hehehee!! A melhor parte é quando a festa da torre acaba e "recomeça" a festa na pista. Imagino como estava alta a taxa de octanagem do seu combustível, Irineu! Hahahah!! ;)

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  3. Um dia eu conto como foi a briga na corrida de Speed 1600. Um dia eu conto também como foi que o Xué bateu o recorde da pista de R/C do Jaguaré com o carro dele na bancada, sendo reparado. :)

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  4. Genial! Realmente da pra se imaginar lá. Deve ter sido fantástico! Parabéns, Irineu! As fotos também ficaram sensacionais.

    Abraços,
    Bruno Mansano

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  5. Sensacional... Dei várias risadas lendo isso... imagino o Irineu querendo voar no pescoço do cara... já vi essa cena... hahaha

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  6. Irineu, conta pro povo a sua primeira corrida... Com o Golzinho a ar mais rápido do planeta...hehehe

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